Alergia ao Leite de Vaca

Alergia à Proteína do Leite de Vaca
Cow Milk Protein Allergy
Yu Kar Lins Koda1
Dorina Barbierf


A alergia alimentar é uma entidade clínica resultante
da sensibilização de um indivíduo a uma
ou mais proteínas alimentares, absorvidas através
de uma mucosa intestinal permeável Trata-se de
uma situação mais freqüente do que se supõe e
constitui assunto de grande importância para a
prática pediátrica dadas as repercussões gastrintestinais
e nutricionais que ela pode acarretar especialmente
nas crianças de baixa idade,
Muitos pediatras, no passado, eram céticos a
respeito desta síndroma, devido à ausência de métodos
sensíveis e de critérios objetivos para o seu
diagnóstico, A investigação clínica nessa área é
muito difícil e os resultados obtidos por vários autores
freqüentemente são duvidosos ou discrepantes,
Somente nos últimos 10 anos é que a existência
dessa afecção passou a ser aceita, embora
persistam as mesmas dificuldades metodológicas,
A incidência de alergia alimentar na infância citada
na literatura varia de 0,3 a 38% dependendo
dos diferentes critérios diagnósticos e das diferentes
populações de estudo1 c 21,
Vários alérgenos alimentares foram descritos,
sendo mais freqüentemente citados o leite, a carne
de vaca, a soja, o trigo, o ovo, o peixe, o tomate, a
laranja, a banana, nozes, chocolates e cereais,
A absorção do antígeno pela mucosa intestinal
e a conseqüente sensibilização pelo mesmo estão
na dependência direta de dois fatores: da permeabilidade
aumentada da mucosa do intestino
Instituto da Criança "Prof, Pedro de Alcântara" do Hospital das Clínicas
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Unidade de
Gastroenterolosia.
1 Assistente
2 Chefe de Unidade

delgado e do deficiente controle do antígeno pelo
sistema imunológico,
Estudos em animais de experimentação demonstram
que antígenos macromoleculares podem
ser absorvidos pela célula epitelial do intestino
delgado através de um processo muito semelhante
ao da pinocitose descrito nos macrófagos
humanos3'15, Inicialmente, através de um fenômeno
chamado absorção, as macromoléculas que
se encontram na luz intestinal interagem com os
componentes da membrana vilositária da célula
epitelial, ficando acumuladas na superfície até alcançar
uma concentração suficiente, capaz de induzir
então uma invaginação (endocitose) com
formação de pequenas vesículas (fagossomos), Esses
fagossomos migram para a região supranuclear
da célula onde as vesículas se coalescem com os
lisossomos, formando vesículas maiores, conhecidas
como fagolisossomos e dentro dessas vesículas
ocorre então a digestão intracelular, Porém, pequena
quantidade de moléculas ingeridas pode
escapar à digestão, e migrar para a superfície basal
da célula, depositando-se no espaço intersticial
através do processo da exocitose, A esse mecanismo
residual e imaturo de absorção da mucosa
intestinal denomina-se permeabilidade intestinal.
Atualmente vários estudos clínicos sugerem que
esse mecanismo de absorção ocorre, em condições
fisiológicas, no ser humano tanto na criança
como no adulto não se aceitando mais, portanto, o
antigo conceito de que o trato gastrintestinal do
adulto seja uma barreira impenetrável a antígenos,
No entanto, esse processo pinocitótico de absorção
de macromoléculas é tanto mais intenso
quanto mais jovem é o indivíduo, motivo pelo qual
o recém-nascido e o lactente jovem possuem uma
permeabilidade intestinal aumentada10 e 17.
Em situações normais, o adulto, além de ter
permeabilidade intestinal menor comparada ao do
recém-nascido e lactente jovem, possui um sistema
imunológico desenvolvido e efetivo que limita o
acesso dos antígenos à circulação sistêmica, evitando
assim os fenômenos de sensibilização. O
mesmo, porém, já não ocorre com o recémnascido
e o lactente jovem. Esses, em virtude da
imaturidade ¡munológica, principalmente da baixa
produção de IgA nos vários níveis (secretor, sérico
e tecidual), não conseguem bloquear o trânsito
dessas macromoléculas que, dessa forma, alcançam
o interstício e a circulação geral, Como conseqüência
dessa permeabilidade intestinal aumentada
e do controle ineficaz do antígeno absorvido,
estas crianças são extremamente susceptíveis a desenvolver
fenômenos alérgicos quando submetidas
precocemente a uma alimentação rica em antígenos
alimentares (Fig. 1).
Desta forma, compreende-se facilmente porque
nessa faixa etária deve ser estimulado o aleitamento
materno e evitar a prática de introdução
precoce de leite de vaca e de alimentos sólidos.
O leite materno, além de conter proteínas da
mesma espécie, é rico em fatores protetores e "fatores
de crescimento" que induzem a maturação
intestinal diminuindo a sua permeabilidade, Assim,
a administração do leite materno ao lactente nos
primeiros meses de idade o protege neste período
de vulnerabilidade, diminuindo a susceptibilidade
dessas crianças a desenvolver alergia alimentar,

ALERGIA À PROTEÍNA DO LEITE DE VACA

O leite de vaca é o alérgeno alimentar mais representativo
para o grupo etário pediátrico, não só
por ser o mais utilizado como pelo seu forte potencial
alergênico,
O leite de vaca contém mais de 20 componentes
proteicos dotados de diferentes graus de atividade
antigênica e vários estudos5'7 e 9 em indivíduos
alérgicos ao leite de vaca revelaram que a sensibilidade
dos mesmos a cada fração obedece às freqüências
citadas na tabela 1.
Tal fato demonstra que a fração betalactoglobulina
é a que mais freqüentemente induz
sensibilização e ela é precisamente uma fração ausente
no leite humano,
A incidência da alergia à proteína do leite de
vaca citada pelos vários autores varia de 0,3 a
12,7% conforme a população de estudo,

ETIOPATOGENIA

A alergia à proteína do leite de vaca pode ser
dividida em primária, ocorrendo em crianças de famílias
com antecedentes atópicos, e secundária,
ocorrendo após surtos de gastrenterocolite aguda
ou conseqüente à deficiência transitória de IgA,
Evidências atuais sugerem que na mucosa intestinal
sensibilizada, a reação local resultante
pode ser mediada através de uma ou mais das seguintes
reações alérgicas classificadas por Gell &
Coombs: tipo l, tipo III e tipo IV,
A reação do tipo l é uma reação mediada por
IgE e os sintomas são resultantes da liberação de
substâncias vasoativas por mastócitos ou basófilos
fixos ao anticorpo IgE, Alguns estudos como o encontro
de títulos elevados de anticorpos IgE às
proteínas do leite de vaca2e4; o aumento no número
de células produtoras de IgE na mucosa do
intestino delgado11618 e a melhora clínica após tratamento
com cromoglicato dissódio8 favorecem a
hipótese de que esse tipo de reação possa estar
envolvido na alergia à proteína do leite de vaca,
A reação do tipo III é caracterizada pela formação
de complexos antígenos-anticorpos solúveis
com ativação do complemento, desencadeando
assim uma reação inflamatoria, As seguintes evidências
falam a favor da existência desse tipo de reação
na alergia à proteína do leite de vaca: presença
de anticorpos precipitinas e consumo de complemento
em indivíduos alérgicos ao leite de vaca14,
assim como aumento do número de células produtoras
de IgA na mucosa intestinal13,
A reação do tipo IV é mediada por células T especificamente
sensibilizadas, Esse tipo de resposta
imunitária na enteropatia induzida por leite de
vaca ainda não foi investigado de modo sistemático,
No entanto, estudos mostrando o encontro
da transformação linfoblástica e sensibilização da
célula T induzidas pelas proteínas do leite de vaca
sugerem que esse tipo de reação possa estar presente6,
Esses mecanismos isolados ou combinadamente
podem estar diversamente envolvidos em
cada caso individual, Não se sabe quais os determinantes
dessas diferentes respostas alérgicas, atribuindo-
se, no entanto, papel significante a fatores
genéticos e ao grau de exposição e antígenos,

PATOLOGIA

Na enteropatia sensível ao leite de vaca a mucosa
intestinal pode se apresentar difusamente aiterada,
mas o aspecto mais freqüente é o de distribuição
das lesões em placas, A lesão é inespecífica
e pode ser representada pela redução das alturas
das vilosidades, dos enterócitos e das microvilosidades;
há aumento do número de linfócitos interepiteliais
e o cório pode se apresentar com edema,
dilatação linfática e com infiltração eosinofílica6'
12e19,

QUADRO CLÍNICO

A alergia à proteína do leite de vaca nas crianças
é um fenômeno transitório de duração variável,
Os sintomas em geral aparecem nos primeiros três
meses de vida, eventualmente já a partir do segundo
dia, Várias manifestações clínicas foram descritas
em associação com a alergia à proteína do
leite de vaca, as quais podem ser divididas em dois
grandes grupos:

1, predominantemente gastrintestinais
- agudas
- crônicas

2, extra-intestinais
- respiratórias: rinite, rinorréia, asma,
bronquite, otite média
serosa crônica.
- dermatológicas: dermatite atópica, eczema,
urticaria, angioedema.
- hematológicas: anemia, eosinofilia.
-neurológicas e comportamentais: irritalidade,
celaféia, hiperatividade,
letargia, choro excessivo,
fadiga,
Na experiência de Wlaker-Smith20 a manifestação
gastrointestinal na sua forma aguda, é a mais
freqüente, Caracteriza-se pelo início súbito com
vômitos e diarréia simulando um quadro de gastroenterocolite
aguda, Como a alergia à proteína do
leite de vaca muitas vezes aparece após um episódio
de gastroenterocolite aguda, torna-se quase
impossível fazer um diagnóstico diferencial exato
entre essas duas situações no início da doença,
A síndrome aguda pode, embora rara, se manifestar
como anafilaxia aguda e fatal, Parish & cols,16
sugerem que a alergia à proteína do leite de vaca,
tipo anafilático, seja uma das causas de "morte súbita
no berço".
Na forma gastrintestinal crônica, o início é gradual
com vômitos, diarréia, eólicas. As fezes são líquidas
e explosivas ou semipastosas, sempre com
muito muco e, em casos mais graves, com estrías de
sangue, A intensidade do quadro varia muito, alguns
com diarréia sem prejuízo do crescimento,
outros com desnutrição e achados laboratoriais de
má absorção intestinal. Ainda dentro da síndroma
crônica, outras modalidades de manifestações são
descritas como:
Lcolite alérgica: algumas crianças reagem
com um quadro semelhante à colite ulcerativa,
com evacuações muco-sanguinolentas
e com distensão abdominal, O exame retossigmoidoscópico
revela mucosa friável, hemorrágica,
recoberta por exsudato mucopurulento,
com histología semelhante à colite
ulcerativa,
2, enteropatia perdedora de proteínas
3, perda de sangue oculto nas fezes
4, eólicas abdominais
5, vômitos
6, obstrução intestinal
7, obstipação intestinal

DIAGNÓSTICO

Em nosso meio, dadas as limitações técnicas, o
diagnóstico presuntivo da alergia à proteína do leite
de vaca é baseado principalmente em elementos
clínicos tais como antecedentes familiares e outras
manifestações alérgicas, O diagnóstico definitivo
é confirmado após o teste de provocação que
consiste no desaparecimento dos sintomas após a
exclusão do leite e recidiva quando o mesmo é
reintroduzido, Esse teste não deve ser realizado,
no entanto, em crianças cujo início da doença foi
muito intenso, pois pode levar ao choque,
Laboratorialmente algumas alterações podem
ser encontradas embora não de maneira consistente
em todos os casos, O hemograma pode mostrar
uma anemia hipocrômica microcítica e/ou eosinofilia;
a d-xilosemia pode estar baixa e a pesquisa
de gordura fecal e perda proteica fecal positivas
traduzem má absorção intestinal, Anormalidades
¡munológicas podem estar presentes traduzidas
pela presença de anticorpos precipitinas no soro
e/ou nas fezes; aumento de IgE sérica; IgA sérica
aumentada ou reduzida; consumo de complemento
e testes cutâneos alterados,

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

O diagnóstico diferencial mais importante a
considerar é a intolerância secundária à lactose.
Outros diagnósticos diferenciais são: gastrenterocolite
aguda, doença celíaca, retocolite ulcerativa
inespecífica.

TRATAMENTO

O tratamento consiste em eliminar o leite de
vaca e também todos os seus derivados da dieta da
criança, O leite pode ser substituído por soja ou
mamadeira de frango, A duração da dieta deve ser
longa, seis meses a dois anos, quando em geral a
sensibilização desaparece,
Atentar para a freqüente possibilidade de associação
com alergia a outros alimentos como soja,
ovo, laranja, tomate, trigo, chocolate, carne de
vaca. Aconselha-se o retardamento na introdução
desses alimentos pois possuem grande potencial
alergênico, A introdução deve ser gradual com rodízio
constante na administração dos mesmos procurando
dessa forma diminuir a chance de sensibilização,

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